Uma revolução no mundo corporativo
Francesco Guerrero, Financial Times (VALOR ECONOMICO) - 17/03/2009
Em outros tempos, a proposta do atendente no balcão de embarque teria sido aceita com entusiasmo. Em meio à pior retração econômica desde a Grande Depressão, porém, políticos populistas e uma imprensa agressiva que clama por uma sanção severa contra os "excessos" de Wall Street, o veterano banqueiro parou para pensar quando ouviu essas geralmente bem-vindas palavras de empresa aérea: "Senhor, sua categoria foi elevada para primeira classe. Queira me acompanhar".
Quando finalmente respondeu: "Estou bem na classe econômica, obrigado", ele renunciou ao melhor assento e abriu outra fissura na blindagem de crenças e práticas que a América corporativa construiu e disseminou pelo mundo por décadas.
Outrora saudados como exemplos de um sonho americano que recompensava sucesso com polpudos contracheques, benefícios generosos e admiração popular, os executivos e suas companhias foram apanhados no centro de uma tempestade que revolucionará o mundo dos negócios. O congelamento profundo dos mercados de capitais, a implosão de grupos financeiros e o resultante crescimento da ascendência dos governos ante o setor privado colocaram em xeque parte dos alicerces do capitalismo anglo-saxão.
Dogmas de longa data da crença empresarial - a busca de valor para o acionista, o uso de opções de ações para motivar empregados e um leve toque regulatório, combinado com fiscalização da direção pelo conselho de administração - estão sendo responsabilizados pela turbulência e parecem ser candidatos prováveis a uma reformulação.
"Estamos em águas inexploradas", diz Jack Welch, o ex-CEO da General Electric, que personificou uma época em que a interação desimpedida das forças de mercado, executivos-chefes prepotentes e enfoque instantâneo nos aumentos trimestrais das receitas reinavam absolutas.
Se, como já ficou dolorosamente claro, o sistema de valores e os princípios operacionais que formaram a psique corporativa pelo menos desde a Guerra Fria foram considerados deficientes, o que deverá vir em seu lugar?
Líderes do mundo dos negócios são por instinto um tipo de gente "meio copo cheio", mas, desta vez, poucos acreditam que o futuro das suas empresas reside nas suas próprias mãos. A atuação do setor financeiro, que causou os choques que sacudiram a economia mundial, teve um grande efeito colateral: o debate em torno da governança empresarial não está mais confinado à sala de reuniões do conselho de administração. Acionistas, que vão desde sindicatos a investidores engajados e o próprio governo, estão reivindicando o direito de fixar os limites de uma nova ordem corporativa. Nas palavras de um líder sindical: "O tempo das ditaduras corporativas acabou. Chegou a nossa vez".
Essas pressões, combinadas a uma reavaliação interna das prioridades das empresas precipitada pela crise, estão começando a demolir um dos pilares do edifício corporativo anterior: o culto do valor para o acionista.
Desde que Welch tornou o conceito famoso num discurso proferido no Hotel Pierre de Nova York, em 1981, a meta de curto prazo de recompensar acionistas através da elevação de lucros e dividendos a cada três meses tornou-se um mantra para empresas por todo o mundo. Com a disparada nos preços das ações da GE e de outras empresas focalizadas nos acionistas, executivos de todo o mundo incorporaram a crença que Alfred Rappaport explicou em seu livro de 1986, "Creating Shareholder Value" (gerando valor para os acionistas): "O derradeiro teste da estratégia corporativa, a única medida confiável, é saber se ela cria valor econômico para os acionistas".
Os gestores de fundos estimularam essa atitude, à medida que a pressão gerada por suas próprias avaliações trimestrais os tornava dependentes das melhoras periódicas nas receitas e nas cotações dos papéis, prometidos pelos profetas do valor para os acionistas.
Hoje, esse enfoque no imediatismo é visto como a causa essencial da difícil situação econômica mundial. "A maximização imediata do valor para o acionista, por si, sempre foi excessivamente de curto prazo em natureza", diz Jeffrey Sonnenfeld, da Escola de Administração Yale. "Ela criou uma ilusão efêmera de geração de valor, ao ressaltar metas imediatas à custa de estratégias de longo prazo". Até Welch argumenta que concentrar-se exclusivamente nos aumentos do lucro trimestral "foi a ideia mais tola do mundo". "O valor para o acionista é um resultado, não uma estratégia", ele diz. "As suas principais clientelas são os seus empregados, seus clientes e os seus produtos."
A exemplo de muitas outras personagens do mundo dos negócios, Welch quer que a tarefa de mapear um novo caminho, distante do conceito de curto prazo, recaia sobre os diretores e executivos. Sindicatos, órgãos reguladores e autoridades do governo argumentam, porém, que uma campanha por mudança, liderada pela mesma elite empresarial que ajudou a causar a turbulência, não conseguirá remover as contradições que minaram o regime anterior. "Não acreditamos que as empresas devam ser administradas no interesse de investidores de curto prazo e de executivos que estão firmemente decididos a enriquecer de repente, independente dos riscos, e a deixar os contribuintes e os reais detentores de longo prazo juntarem os cacos", disse Damon Silvers na AFL-CIO, a confederação dos sindicatos de trabalhadores dos EUA.
Sindicatos e investidores "socialmente responsáveis" argumentam que o enfoque em lucros de curto prazo deveria ser trocado, não só por pensamento estratégico de longo prazo, mas também pela atenção a temas como o ambiente e as necessidades dos clientes e fornecedores. O movimento de responsabilidade social corporativa, em alta antes da crise, provavelmente receberá um ímpeto renovado pelo reconhecimento do investidor, de que a estreita busca do lucro pelas empresas nem sempre foi a melhor estratégia.
Muitos líderes empresariais desaprovam o que consideram ser uma intromissão crescente do Estado e de outros grupos de interesses na sua capacidade de administrar a companhia. "Se existe um perigo na situação atual, é o de não sabermos como sair desta pequena aventura em socialismo, para que o setor privado possa fazer o que ela sabe melhor - ou seja, inovar, crescer e criar emprego", diz John Castellani, presidente da Business Roundtable, o grupo lobista para algumas das maiores companhias dos Estados Unidos.
A chegada do presidente Barack Obama à Casa Branca na esteira de uma maioria democrática no Congresso, aliada a um aumento da antipatia do público a plutocratas, já resultou em grandes vitórias para sindicatos e outras organizações militantes. Reformas que investidores ativistas haviam exigido por anos, sem grande sucesso, como uma votação (embora não obrigatória) sobre remuneração dos executivos, já foram aprovadas pelo Congresso. Outras, como o "acesso por procuração" - o direito de acionistas nomearem candidatos para o conselho de administração e rejeitar diretores com desempenho insatisfatório - estão a caminho, ao passo que os limites para as gratificações, impostos aos bancos que tomaram recursos do governo, causaram um frio na espinha de muitos executivos.
Essas iniciativas proporcionam mais munição aos ativistas na primeira grande batalha para remodelar as regras do jogo corporativo: a remuneração de executivos. O fracasso do modelo de alto risco e alta recompensa de Wall Street deverá causar mudança em duas frentes importantes: remuneração da alta direção e o uso de opções de ações.
Após anos de salários em alta, os lideres empresariais nos Estados Unidos podem nutrir esperanças de colher recompensas relativamente magras nos próximos anos. À medida que a retração econômica se movia de Wall Street para a sociedade em geral, até empresas que não haviam recebido ajuda federal, como GE, FedEx e Motorola, se uniram às que recebem ajuda vital do governo, na drástica redução da remuneração dos executivos do alto escalão.
Muitos também estão reexaminando a disparidade de remuneração entre executivos e demais empregados. Na América, a discrepância entre a remuneração dos situados no topo da árvore corporativa e os bem abaixo no tronco tem aumentado regularmente por décadas, atingindo estimadas 275 vezes a média em 2007 e contribuindo para a crescente desigualdade de riqueza no país.
Uma parcela substancial da culpa pela alta vertiginosa ocorrida na remuneração dos executivos e pela obsessão dos administradores com metas de curto prazo está sendo atribuída às opções de ações e outras formas de incentivo à remuneração.
Até agora saudada com uma ferramenta para alinhar a remuneração dos executivos com os ganhos dos acionistas, as opções têm ficado cada vez mais desacreditadas como forma de recompensar executivos por altas no mercado acionário que nada têm a ver com eles. No setor bancário, concessões de opções e ações de fim de ano tinham a desvantagem adicional de remunerar o corpo de funcionários bem antes que a empresa ou seus acionistas pudessem constatar se as suas apostas haviam vingado.
Vários bancos anunciaram planos para retomar gradativamente as gratificações futuras de empregados cujos negócios deram errado nos anos passados. Mas a consequência daquilo que um executivo chamou de "época em que nos gratificávamos com dinheiro alheio" será sentida muito além do sistema financeiro. Parece certo que órgãos reguladores e investidores reforçarão a conexão entre remuneração e desempenho de longo prazo, por meio da instituição de medidas como uma proibição a vendas de ações e opções até a aposentadoria, ou mesmo um limite direto à remuneração.
Fred Smith, fundador e executivo-chefe da FedEx, falou por muitos líderes empresariais em dezembro, quando predisse: "Parte dos fantásticos ganhos exagerados que representaram uma afronta para as pessoas serão cada vez mais improváveis. No nível do conselho de administração as coisas não serão consideradas como sendo sem custo para os acionistas".
Os próprios conselhos de administração estarão na linha de fogo. As perdas sofridas pelos grupos financeiros expuseram a crença de que os diretores eram os versados guardiões dos interesses dos acionistas como sendo uma falácia - que não passará despercebida de investidores furiosos e advogados ávidos por honorários. Como resultado, a composição dos conselhos de administração deverá mudar dramaticamente.
Russell Reynolds, o decano dos caçadores de talento americanos, diz que os diretores precisarão ser mais versados e mais altruístas. "Idos são os dias em que diretores jogavam um bom jogo de golfe, mas não conheciam a relação risco-compensação do negócio", ele diz. "Ainda assim, o ambiente atual exige pessoas que possam devotar tempo para o negócio em troca de remuneração relativamente baixa. É quase um ato de caridade"
Investidores como Bob Pozen, que dirige a MFS Investment Management, acredita que os conselhos de administração das empresas registradas em bolsa deveriam se assemelhar mais às suas rivais pertencentes a empresas de "private equity": menores, mais ágeis e mais competentes. "Os diretores naqueles conselhos têm a experiência, o tempo e o incentivo para entender plenamente os temas da empresa", diz.
Jeffrey Immelt, que presidiu uma queda de aproximadamente 75% no preço das ações da GE desde que sucedeu a Welch em 2001, e que ontem testemunhou a retirada da sua classificação de crédito "AAA" pela Standard & Poor´s, lamentou-se, recentemente: "Qualquer um podia dirigir um negócio na década de 1990. Um cachorro podia tocar uma empresa".
Infelizmente para Immelt e seus contemporâneos, estes anos não são os anos 1990 e tampouco se parecem com os anos seguintes. À medida que estruturas de negócios que se acreditava serem indestrutíveis se desfazem em meio ao colapso geral, o setor empresarial precisará renunciar a muito mais do que seus assentos de primeira classe. (Tradução de Robert Bánvölgyi)
Nenhum comentário:
Postar um comentário