África - última fronteira agrícola
Há uma fronteira agrícola cujo potencial transformador poderá decidir o sucesso ou o fracasso da luta contra a fome e a miséria no século XXI: África.
Qualquer fórum relacionado à segurança alimentar e ao combate à miséria terá que levar em conta o peso descomunal desse continente de 800 milhões de habitantes, onde o sempre desconcertante entrelaçamento entre riquezas naturais e miséria atinge níveis superlativos.
Diferentes pontos de fuga - não raro impositivos, violentos - serviram muitas vezes para protelar decisões estratégicas sobre o seu destino, sem considerar as urgências de seu povo.
Mais que nunca, o colapso de 2007/2008 (que ameaça repetir-se em 2011) reafirmou que a questão estrutural da pobreza e do desenvolvimento terá que ser enfrentada, em primeiro lugar, com o empenho da cooperação entre os principais interessados na sua equação: governos e a cidadania das nações mais vulneráveis, mobilizando - sobretudo - seus próprios recursos.
É nesse cenário que se renova a importância e a centralidade da agricultura familiar na reordenação da luta contra a fome em nosso tempo. Oito dos nove países mais devastados pela subnutrição localizam-se no continente africano. Neles, a vida de 200 milhões de homens e mulheres encontra-se raptada pela rotina da insegurança alimentar. A maioria esmagadora vive em zonas rurais - a exemplo do que ocorre no resto do planeta, em que 70% da humanidade faminta concentra-se em pequenas propriedades agrícolas.
A grande diferença é que a África, ao lado da América Latina, é o lugar do mundo em que se encontra a última e preciosa fronteira de expansão agrícola das próximas décadas. Explorá-la diretamente em benefício da segurança alimentar de seus habitantes, ou ser recolonizado por ela é uma escolha política que não admite mais hesitação.
A experiência recente tem lições a ensinar.
A agenda dos anos 90 - com seu repertório de privatizações, Estado mínimo e renúncia às políticas de segurança alimentar - não entregou o que prometeu. A abertura comercial unilateral e indiscriminada revelou-se um desastre para as frágeis agriculturas dos países africanos mais pobres.
Está na África e América Latina a última e preciosa fronteiras de expansão agrícola das próximas décadas. Explorá-la em benefício da segurança alimentar de seus habitantes, ou ser recolonizado por ela é uma escolha política que não admite mais hesitação.
Os relatos são pedagógicos. Os subsídios maciços dados aos produtores de algodão dos Estados Unidos, por exemplo, da ordem de US$ 25 bilhões desde 1995, reduziram drasticamente as cotações do produto durante anos. Quase 10 milhões de produtores africanos tiveram prejuízos devastadores no Benin, em Burkina Faso e no Mali.
Na África subsaariana, a expectativa de vida resultante do ciclo neoliberal regrediu aos níveis do início da década de 1970. Desastres climáticos e conflitos fratricidas contribuíram significativamente para agravar essa regressão. O mais grave, porém, é que ali onde sobreveio o infortúnio não havia Estado, planejamento, nem estoques de alimentos para mitigá-lo.
Nos últimos 20 anos, a produção de grãos registrou um crescimento médio de apenas 2,5% nos países africanos enquanto a população cresceu acima disso. E as importações aumentaram, em média, 3,5% ao ano. Estamos falando de um continente que utiliza apenas 14% dos 184 milhões de hectares de terras agriculturáveis de que dispõe.
Se considerarmos a Savana africana, que corta 25 países e guarda profundas semelhanças com o Cerrado brasileiro, a conta vai a 400 milhões de hectares. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), já identificou 35 projetos de cooperação em 18 países africanos e poderá aportar US$ 12,8 milhões em parcerias para transferência de variedades de cultivares, bem como de tecnologias adequadas à agricultura tropical.
Esse potencial cooperativo requer, em primeiro lugar, uma decisão estratégica de devolver às políticas de segurança alimentar a centralidade que elas nunca deveriam ter perdido no processo de desenvolvimento. Não estamos partindo do zero. A África dispõe de um banco de investimento e sedimentou políticas como a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD) e o Programa Abrangente para o Desenvolvimento Agrícola Africano (CAADP).
Há, portanto, base fértil a ser semeada pela ação multilateral. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) reformou-se, vem fortalecendo suas oficinas regionais para intensificar sua presença como parceira e ponte facilitadora de um grande mutirão de solidariedade produtiva entre Brasil, África e os países da América Latina. É necessário frisar: para que essa empreitada tenha êxito, governos e organizações locais terão que resgatar a agenda da soberania alimentar.
A lógica dos mercados desregulados, que arruinou o sistema financeiro internacional e dissolveu os estoques de segurança alimentar das nações - ademais de subordinar o abastecimento de muitas delas aos impulsos erráticos das cotações especulativas - não se mostrou um método adequado para conduzir a bom termo a luta pela segurança alimentar. Insistir nesse caminho seria repetir em 2011 os mesmos erros que deram origem ao colapso de 2007/2008. A um custo em fome e miséria que não temos o direito de legar às futuras gerações.
José Graziano da Silva é representante regional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO para América Latina e Caribe, em licença do cargo para concorrer à direção-geral da organização.